Causos

O cetro e a barata! (inspirado em caso real)

      Embora vivamos num mundo cada vez mais complicado, em que a tal globalização traz culturas diferentes ao conturbado conflito de assunção de preferências, de poder e afirmação,  de gerações e tecnologia, enfim, uma zona total em que pessoa alguma sabe mais o que é certo ou errado, alguns valores e comportamentos permanecem imutáveis.
      
      O famoso e famigerado "climão" entre o casal a denotar iminente tempestade é algo que não mudou, a despeito de milhões de profissionais e tratados especializados sobre o assunto.

          Na pequenez do que sou e sei, aprendi a conhecer de longe os sintomas de quem é adepta da prática, e a fugir no melhor da minha velocidade, de qualquer maior envolvimento.



  
         *
           
          Pela milionésima vez, em fúria contida, Maria exercitava a prática civilizada do diálogo entre o casal, ou seja, o monólogo através do qual ela expunha o acerto das suas razões e motivos, e por decorrência, os erros do João.

 - Que fique bem claro, João! As coisas mudaram entre nós! Agora nós falamos em "pé de igualdade", posso muito mais do que você! A submissa que você um dia conheceu, A  CA  BOU !!!




- Tem.....! - Gaguejou o João.

- Não me interrompa! EU estou falando! E TEM sim, que aprender a conviver com esta nova realidade! - Continuou a agressiva Maria. 

- Atrás de você....! - gaguejava o João! 

- Já disse para não me interromper! Eu sei que você se sente "ATRÁS DE MIM"!  Mas é um mundo de igualdades e é hora de você aprender a lidar com suas limitações e verdades que ouve! - sequenciou a Maria. 




 
- Uma...! - tentava dizer o João!

- Uma parcela significativa da população assustada com nosso real poder! Eu sei! E já disse para não me interromper! - Discursava a Maria. 




- Porque a verdade, Sr. Joãozinho! É que sem nós, as mulheres, vocês homens não conseguem nem...



 
- BARATA! - completou finalmente, o João! 

- Não sou uma dessas fracassadas baratas com quem você conviveu, antes de me conhecer! 

         E a Maria, fazendo o característico "ar de desprezao", olhou para baixo e para trás, a indicar sua imensa superioridade! Foi quando viu: 


 
          A Maria então, esquecendo seu imenso poderio e ladainha, disparou a pular e a gritar: 

- UMA BARATAAAAA!! JOÃÃÃÃOOO! FAZ ALGUMA COISA, HOMEM DE DEUS!!!


          
           O João, aparentemente perdido em meio ao caos, partiu para cima da pobre barata, que, se vendo acuada: 





         Desesperada a Maria se pôs em fuga, ganhando a rua e gritando de longe que voltaria apenas para o jantar.

          João olhou pensativamente para a barata pousada na parede e pensou: 

- A ordem do universo foi restabelecida, só em parte e temporariamente, mas que foi, FOI!

          Carinhosamente espantou a barata pela janela, dizendo: 

- Oi, Gilda! Faz tempo que você não aparece! Vai em paz! 

             No cantinho secreto da parede colocou mais um restinho de comida gordurosa. Ato contínuo, interfonou para seu amiguinho do andar abaixo: 

- Olá, Miguel! Como vai a nossa iguana? Não esquece de comprar a comida dela (baratas). Tá no fim? Vem aqui pegar a grana....!!! E CAPRICHA!     
           

***
 
Ele ou eu...!!! 


      A vida transcorria em aparente normalidade! O sol continuava nascendo todos os dias, com as pessoas interessadas e ocupadas com seus afazeres, paranoias, e vícios. No interregno da dúvida entre realizar projetos e aguardar o que a próxima maré traria, aproveitavam para fazer alguns reajustes comportamentais no relacionamento e convívio entre elas. 

      Assim foi que, naquele frio e belo entardecer, transcorria a paz do exercício do cotidiano: 





      Contudo, quem tem de noite a companheira, sabe que a paz é passageira, e que, de pronto, é estilhaçada não pelo aventar ou comentar, mas sim, pelo expor, fundamentar e determinar, a descartar réplicas e tréplicas: 



Ela: - Precisamos resolver urgentemente esta questão do teu cigarrinho! Voce disse no site que fuma OCASIONALMENTE! Assim como está, NÂO DÁ!!!



Ele: - Mas que caramba! Compareço sempre cheirosinho, não fumo em locais fechados com você! Depois de fumar, escovo os dentes e lavo as mãos! Não menti no site, fumo ocasionalmente SIM! Ou seja, fumo em todas as ocasiões em que estou fumando! É um simples e lícito cigarrinho! Não seja radical!



Ela: - São vários os problemas! O teu bafo é de arrebentar estômago de jibóia e o teu sorriso não é nada bonito de se ver! 


Ele: - Mas.., mas....

Ela: - Não me interrompa! Agora você vai ouvir TUDO o que tenho a lhe dizer! Voce SABE MUITO BEM, que aguardamos ansiosas as oportunidades de um bom destampatório no lombo de vocês! 

 -  Quando nos conhecemos, você até que era aceitável, já bem acabadinho, mas ainda trazia um pouco do brilho da juventude que te restava! 




 - Mas HOJE? Você está quase um velho decrépito por culpa desse maldito vício! 



- Eu não sou TÃO exigente assim! Mas tem que haver um limite para o que a medicina pode ou não reabilitar, deixando quase natural! 




 -  E a tua casa? Adianta eu arrumar diarista e me arrebentar? O teu cigarro deixa tudo com cheiro de LIXO!




 - Por mais que me proteja, NÂO DÁ! Tem certas horas e atividades em que não posso usar o E.P.I.!   


  

 - Voce sabe que sou uma pessoa de boa vontade, disposta a inovar e conciliar! Mas isto vai só até um certo ponto! Também tenho meus LIMITES!


 - Procurei ajuda especializada, conversei, e concluí! 




 - Não quero partilhar o mesmo DESTINO TEU!



- O teu cigarrinho vai te deixar sozinho! 



Ela (sempre ela): - Ou você pode procurar uma agência matrimonial!



 - E se relacionar com alguém de vícios e costumes iguais! 


- Mas.., resumindo: Talvez tenhamos chegado ao FIM! Ou ELE ou EU!



*

Ele: - Posso dizer algo? 



Ela: - Seja breve...! Meu tempo é curto e minha paciência mais ainda! 

Ele: - Procurei fazer com que meu pequeno hábito não a incomodasse!



 - Entre casais, deve haver união e confiança! 



 - Estou tentando resolver o problema sem muitos efeitos colaterais! 



 - Tenho tido efeitos físicos e rebordosas! 



 - Já até recorri ao meu anjo da guarda! 



- Se necessário, recorrerei à ajuda espiritual terrena! 


- Estou fazendo o sacrifício necessário ao nosso bom entendimento! 


       
- Porém! Repito! Deve haver confiança e lealdade! Vai funcionar SIM!




- E saiba que, que se eu não conseguir, a avisarei previamente, para que possamos cada um seguir seu caminho! Cada um à seu modo! 





Ela: - Sigamos adiante! Mas saiba que estou "de olho" em voce! 



- Na primeira escorregada....!!



Ele: - Mas..., mas...! 

Ela: - O ASSUNTO ESTÁ ENCERRADO! E você é muito machista!  Nunca tenho voz ativa na relação!






Ele: -  Não  grita comigo e nem me dê ordens, pois não sou seu marido! E não sou machista! Porque...


 


Ela: - SÊO GROOOSSSSSOOOOOOO!!!


    
***
O Garanhão Árabe em: O Test Drive!

      O peito largo, o riso claro, amigo dos amigos, não tem medo de nada, zomba dos perigos.

      De ordinário, seu trafegar é modulado pelas informações que lhe transmitem seus apurados sentidos. As narinas largas e dilatadas captam moléculas de feromônios na atmosfera. 

Ele é uma fera!
      Os olhos práticos e astutos medem e avaliam as coxas e sobrecoxas, ancas e quadris, e o existente na junção: "O Vale do Paraíso"! 

*
      Mas hoje, circunspecto e resoluto, se deslocou ao destino certo, no cumprimento de missão de responsabilidade, sagrada até. 

      A brisa fez flutuar a esparsa melena, em mostra de liberdade e independência. 

      E então, diante do Reino de Posseidon, demonstrou a segurança de quem sabe o que quer e aonde vai, e a confiança de dono do seu ser, libertando o brado retumbante:

- VAI CURÍNTIA!
       
*
      Retomou célere o caminho a ser percorrido, galgando dunas e murundus, saltando abismos e despenhadeiros. Nada lhe importou: o cansaço, o calor, a sede, os insetos, e as intempéries da maledicência humana.
       
      De longe, já avistara o local da cerimônia e dos rituais sagrados: 

O GARANHÃO ÁRABE VAI ATACAR!

*
       
      Adentrou na antecâmara, os olhos buscaram em vão, na penumbra, a presença da razão de ali estar. A ansiedade não fez menos melodioso o chamado: 

-   Onde esta você, Sherazade? 

      Vinda das profundezas do desejo e da tenda, ei-la que surgiu: 
           
      A voz rouca e quente, a causar arrepios da nuca ao uropígio do Garanhão Árabe, no ritmo da Dança dos Sete Véus, lhe disse:

-   Cá estou, meu alcaçuz! Serve-te de tâmaras, mel e arak, enquanto danço para tornar-me desejável aos teus olhos! 

     E o Garanhão Árabe, sultão disciplinado e acomodado nas almofadas, refreou os ímpetos acasaladores, e cumpriu o ritual da espera e excitação!

      Ao final da dança, tomou Sherazade pelas mãos, e juntos adentraram pelo portal da alcova nupcial:

*
      Ao ve-la nua, o Garanhão Árabe exclamou:

- Pelas barbas do profeta, Ayuni! A naja de um olho só já petrificada de tão encantada!             
  
      Respondeu-lhe Sherazade: 

- Vinde! Meu Ali Babá! Para ti, minha caverna está aberta e acolhedora. Deixemos as falas de "Abre-te/Fecha-te Sésamo" neste causo, só para não termos os 40 ladrões voyeurs nos espionando! Não é o momento de lembrar-nos do PT e nem da Receita Federal! 

      Atiraram-se um ao outro com a fome de mil leões etíopes, ouvindo-se apenas os gemidos e palavras de amor enquanto desgustaram-se, ainda em seara de preliminares: 

-  Nounn...!!!!

- NNOOOUUUNNNN...!!! (glup, glup..)! Engasguei com a baba, Ali! 

      Cavalgaram-se, a subir e a descer, ora por suaves colinas, ora por íngremes penedos. 

      No momento supremo, o da comunhão com os deuses, o das nuvens e da chuva, o Garanhão Árabe partilhou com o universo, e emoção e a efusão da conquista: 

- VAI CURÍNTIA!!!
     
      Ele a sentiu enrigecer-se, e quase acreditando que ela partilhava do momento áureo e frase motivadora, repetiu o brado, mas por via das dúvidas, o fez já sem tanta emoção e convicção: 

- vai curíntia! 

      E então se fez o silêncio nefasto e profundo, que precede o raio e o trovão. No fulgurante olhar, ele viu a chama de mil raios, de mil infernos, e veio o trovão devastador, soturno e profundo, dito entre dentes: 

- Eu sou  PAL.MEI.REN.SE!!!
      *
      Momentos mais tarde, ainda na penumbra, e com as partes pudendas cobertas, conforme determina a moralidade, decência e bons costumes, iniciaram as conversações como seres civilizados, a salvo das paixões mundanas, especialmente as coletivas: 

- Somos pessoas civilizadas, ao abrigo dessas manifestações de "antis", podemos dar continuidade ao nosso encontro, o nosso "Test drive", há muito marcado e desejado, embora pertençamos as nações futebolísticas diferentes!

-  Não sou dessas, Ayuni! Recebi-te como Ali Babá, mas isto não quer dizer que eu aceite os 40 ladrões, porque árbitros e diretorias também entram na soma! Já que iniciamos algo sério entre nós, que haja uma única disputa entre nós, nesta noite, e jamais voltemos ao assunto, independente do resultado, para que as demais 1.000 noites não sejam contaminadas!  

- O que você sugere, bela Sherazade? 

- Quem afrouxar primeiro, perde a prioridade no uso da TV; o direito de fazer piadas sobre o time do outro, e não poderá utilizar hinos e brasões do próprio time em recinto do nosso uso comum! 

- Eu concordo, sedutora messalina

- Última coisa, Ayuni! Esta cimitarra não me abandona! Qualquer tentativa de fraude, ou mesmo de tapetão, eu decepo a tua lança..! 

      De estrovenga em riste, olhos faiscantes, rosnou-lhe o Garanhão Árabe: 

- Me dá cá esta gostosa kiss! Que vou te mostrar com quantos kibes se faz uma kibada! 

      Já nua e preparada, grunhiu-lhe Sherazade: 

- Me dá o zabra aqui! Que te mostrarei com quantas lentilhas se faz uma mjadra!
*
       
      E o que seguiu, fez os artistas  do canal 285 da TV a cabo, parecerem desajeitados principiantes! 

      Diz a lenda, que vizinhos distantes viram, pela noite a fora, a maçaroca de braços, pernas e cabeças, a rolar pela tenda; engalfinhamento dos vultos sobre as mesas, nos tapetes, nos banquinhos, pendurados nas cortinas, e descendo pelas encostas. Dos urros e gemidos, são lembradas apenas 3 frases: 

- Fio terra nãããõoooooo....!!!
- Você saiu do ringue! Ganheeeeiiiii !!!
- Ganhou nada! Só fui cuspir um pentelho que enroscou na garganta! Quem ganhou fui eu..!!!
                  

*
      O Garanhão Árabe acordou no meio da manhã, sentindo-se moído como kibe crú, com gosto de "cabo de guardachuva" na boca. Contudo, sua mente intacta, preocupava-se com as frases soltas durante a noite: 

- prioridade no uso da TV..;
- já que iniciamos algo sério entre nós; 
- jamais voltemos ao asunto, 
- amarrarmos nossos camelos no mesmo poste.

      Abrir os olhos só fez aumentar o pesadelo: 

Precisamos conversar seriamente, Ayuni! Disse-lhe Sherazade! 

*
      Enquanto se banhava, perfumava e compunha-se, o Garanhão Árabe erguia os olhos para o céu e orava ao santo da sua devoção: 

- VALEI-ME SÂO JORGE! E afinal, o Departamento de Dragão é teu! 

*
    
-   Ayuni! Você sabe que sou mulher séria e honesta! Voce sabe, desde o início, que tenho filhinhos do 1° casamento, e que o trolha do pai deles não ajuda em nada! Minha lojinha está na bancarrota! Tem também a conta da nossa festinha: o aluguel da tenda, os comes e bebes, e o que destruímos! A "kiss", a "peludinha", foi avariada, está assada e inchada,  vai precisar de muito gelo e demais cuidados. Voce conhece a tradição do nosso povo: Quem comeu, que aguente e sustente o rolo todo! 

- Sherazade! Não podemos ir com mais vagar neste assunto? Tenho apenas minha aposentadoria e uns free lancers..

- Não tente me enrolar, Ayuni! Vai me dizer AGORA, o que de fato significo para voce! Os meus irmãos, tios e primos, estão lá fora, esperando o resultado da nossa conversa! 

      E então, veio a prova cabal de que a Divina Providência (geralmente Improvidência), existe e atua objetivamente no mundano, pondo, naquele dramático momento, as palavras certas nos dizeres do Garanhão Árabe: 

- Você é o Fenômeno da minha vida! O Ronaldo da minha existência! 

- O QUE?? VOCÊ ME CHAMOU DE GORDA BALOFA E INÚTIL?? ORA! "SÊO COIOTE SARNENTO" !!!

- Por favor Sherazade! Coiotes são bichos norte americanos, e nós somos árabes! 

- O QUE?? VOCÊ ME CHAMOU DE BURRA?? "SÊO DESPREZÍVEL RATO DO DESERTO"! VERME CURINTIANO!! PONHA-SE DAQUI PARA FORA, AGOOOORA! ANTES QUE EU PERCA A CABEÇA E ARRANQUE A TUA!

      E o Garanhão Árabe, mestre na arte de esgueirar-se, se foi! 


*
      Já bem distante, a salvo, homem de fé inabalável, inspirou profundamente o ar da linda manhã, e agradeceu ao Santo: 

VIVO POR TI! DOIDO POR TI! SALVO POR TI!
VAI CURÍNTIA!  
                 
***

AMNÉSIA FATAL - AMARGO DESPERTAR! 

O sublime cochilar "de conchinha", predecessor do profundo e noturno sono reparador, foi interrompido pela voz mansa, meiga e engrolada:

- Amor! Vc está roncando!

O remorso pelas noites desdormidas que à ela já causara, o enterneceu. Porém, mais pungente e convincente que a autorreprovação, foi a certeza do dorido cutucão nas costelas que seguiria o terno queixume.

Ele a beijou suavemente, levantou-se célere, e generosamente recusou ao débil e convencional convite:

- Não me deixe aqui sozinha!

- Estarei no quarto ao lado meu amor! Descanse tranquila!

Rindo internamente da diferença de valores e resultados,  do bem dormir e decorrente bom humor, em detrimento das convenções sociais e conjugais, tendo mal humor por resultante, ele, novamente instalado, adormeceu profundamente, tranquilo e altruísta, porque ela assim também o fazia.

A procedência das acusações de roncos, demais sonoridades e usurpação de espaço comum no leito e cobertas,  era questão relativa a desmerecer maiores debates e jamais conflito.    

A paz da conjugalidade, por este motivo específico e pontual, estava, enfim, assegurada!  

*

Contudo,  tão vital quanto o bem dormir, é o quanto dormir! Há o elemento quantitativo a interferir diretamente no resultado obtido e consequente estado psicológico. 

Embora, cada ser tenha sua medida própria de sono, há o entendimento doutrinário e pacífico jurisprudencial, no sentido de que, aos domingos, há o prolongamento em razão da ausência dos limites temporais do rotineiro labutar. 

Entretanto, indivíduos marcados indelevelmente pelo longo e solitário residir, possuem normas e comportamentos próprios, cuja atipicidade, se não constitui aberração, em nada coadunam com a habitualidade da maioria, origem portanto, de descompassos, quiçá, de desinteligências.

De fato, ouvir e perceber tão somente os ruídos e movimentos que faz, é hábito arraigado do morador solitário, ao ponto de causar estranheza a presença de outrem no reduto sagrado.

*

Sendo assim, em amnésia fatal, houve o despertar com a habitual orquestra:

- UUUUUAARRRRRFFFFF!   O bocejo em ré maior;
- FFFFFUUÓÓÓÓNNNNN!   O trombone do assoar das narinas; 
- CHÔÔÔÔÔ! CHUÁÁÁÁ!   A constatação líquida do bom estado renal;
- FFUUÉÉNN! HEN! HEM!   O sax do flato despachado; 
- GOGÓ RO GOGÓÓÓÓ!    O gargarejo vocalista; 
- PLAFT! TRIM! PLEINN!    Os metais culinários do café;
- TRIBUUUNAAA! FFMM!    A música enlevadora do espírito;
- FFFUUÁÁÁ AAHHHHH!     a nuvem tabagífera a revolutear prazeroza, 
- E AÍ FDP! O QUE VAI ROLAR HOJE? O contato telefônico com a humanidade!

*

Ao dirigir-se à cata de vestimentas, ele deparou-se com um olhar, advindo das profundezas e emaranhado de travesseiros, lençóis e cobertas. Aquele mirar: cavernoso, metálico, rútilo, a refletir: aviltamento, indignação, revolta e juras de ódio eterno, atestou ao universo que:  

Ali findava o domingo! Quando nada, reavivadas estavam as raízes de todas as discórdias existidas, e criadas as por existir, por toda a eternidade!   


***


RINDO DE DESESPERO.

Somente quem foi forçado ao limite das suas forças e resistência, e no estertor do desespero recebeu a bofetada de mais uma humilhação ou desnecessário contratempo ou azar, ou ainda, mais uma recusa à um pequenino e rápido oásis, conseguirá rir deste causo, pois sabe que, muitas vezes, rir de si e das circunstâncias é o único meio de manter o mínimo de sanidade mental.

 *  
Este personagem, à quem vou chamar de Chaves, é fictício, e lhe dei este nome, porque o vejo balançando chaves. Imagino que, no início da adolescência eram as chaves de casa, e depois, com orgulho, balançava as do carro, informando ao mundo que estava motorizado.

Chaves é um homem bom, educado, cavalheiro, inteligente, e um ótimo profissional. Houve quem afirmou, que Chaves em vendas e relações públicas é imbatível. Até mesmo a ex-mulher  dele reconheceu desinteressadamente esta qualidade, o que dá total credibilidade ao fato, vez que, elogio de "ex" normalmente é tentativa de passar a bomba pra frente,  ou ato preparatório para alguma mardade. 

Chaves, de normal, é excelente companhia, prosa das mais interessantes e agradáveis, mas, quando toma umas e outras (bem mais que umas e muitas outras), transmuta-se em: agressivo, implicante, arrogante, violento, e perde totalmente o controle sobre o que faz e diz. Isto já lhe valeu, vale e valerá, muito sofrimento na vida.

Certa feita, depois de várias, Chaves dirigiu um bug pelas ruas de um balneário à beira mar, e cortou a frente de um motociclista, que, para não colidir, jogou sua motóca dentro de um daqueles fétidos canais de escoamento (de tudo). Ato contínuo, e por sua vez, para não ser colhido por um ônibus nada altruísta, lá se foi o Chaves com o bug para dentro de outro canal.

Teme-se pela vida e integridade física de Chaves, quando em estado etílico, pois, além de ter problemas de saúde, alguém pode não gostar de sofrer o infortúnio de estar ao seu alcance.

A vida apertou pra valer, ou ainda, as consequências e decorrências das aprontadas começaram a chegar, e Chaves se viu em uma situação difícil: divorciado, desempregado, sem dinheiro, solitário, e responsável por idosa, cuja idade e temperamento agressivo com ele, tornaram sua vida um circo de horror.

Mas, Chaves, com toda sua carga, surpreendia à todos, com sua paciência e resistência. Quando não aguentava mais a carga, ele se refugiava em alguns (muitos alguns) gorós e desembestava a fazer besteiras na internet, pondo para fora, de forma nada assertiva, o que lhe ía de ruim no interior. Já se apaixonou, teve encontros, arranjou namoradas, desfez namoros, enfim, para bem próprio e da humanidade, era melhor suas encrencas internéticas e telefônicas, que fisicamente.

Chaves tem um amigo, à quem conta algumas de suas agruras e peripécias, e assim, iniciou sua narrativa ao amigo:

- Vi uma tremenda duma gostosa e parti pro ataque! No escrito!  Disse que ela tem peitões deliciosos e uma senhora bunda! Ela me chamou de grosso, mal educado, cafajeste, e eu maneirei. Ela então, reconsiderou e me deu o número do telefone dela, e eu telefonei. Ela atendeu:

- A A A LÔ! so so so eu!  Te te te nho   pro pro pro ble mas,   so so sou    de de fi fi ci ci en te !!! 

O amigo, sabedor dos problemas de saúde do Chaves, ao vê-lo gaguejar com toda a seriedade (imitando a moça com quem falara), achou que o Chaves estava tendo um ataque cardíaco, síncope ou algo que o valha, e pulou apavorado, dizendo:

- CARA! Fala comigo! Não morre não! Vou chamar o SAMU! 

E o Chaves, meio bêbado, sem perceber o susto que estava provocando no amigo, continuou a imitação, relatando a fala da moça deficiente:

- Na na não   que que que ro   ve ve ver   te te teu   pi pi pinto   na na não!

E ficaram por minutos, cada um com sua vã tentativa de transmitir ao outro, sem saberem o que estava acontecendo, até que os dois, começaram a entender a confusão existente. E aí então, lágrimas de um riso desesperado e agônico vieram, por aquilo que não tem mais salvação, por um mundo que não mais existe, e pela incerteza de aceitar e sobreviver com o que restou ou com o que será alcançado por muita sorte.

E os dois,  amigos há 40 anos, olharam para o chão, sorriram tristes e mentalmente pegaram, cada um a sua carga, e pensaram ao mesmo tempo:  

Bem que poderia ter uma trégua, um pequeno descanso, uma pequena alegria, um alento e uma esperança, né? Não tem jeito não! Só mandando tudo  e todos tomarem....!
  

  ***


UM CASAL, UMA QUERMESSE E UMA MOTO.

Naquele sábado pela manhã, a temperatura fria e o céu oscilante entre chuva e sol, contrastavam com a vontade de viver. Há muito, os habituais frequentadores do local de encontro haviam retornado aos seus grupos e afazeres individuais.

No final das contas, de seu, o ser humano só possui a consciência da sua solidão, ou, quando muito, a companhia do(a) companheiro(a), a depender necessariamente de afinidades, que, no caso há.

Em momentos tais, restam duas alternativas: a) recolher-se ao doméstico trivial, elaborando desculpas e metabolizando frustrações, ou b) atirar-se ao improviso, vencendo a inércia e assumindo os riscos.

De natural, inquieto temperamento e irriquieto comportamento, o casal optou pela 2a. opção, recorrendo ao recém adquirido meio de transporte motociclístico, aproveitando o ensejo para desenvolver suas naturais e individuais capacidades viageiras.

Em aleatório "cara ou coroa", duas moedas foram jogadas para o ar: a primeira a definir latitude, a segunda, longitude. As escolhas dos quadrantes subjacentes foram deixadas para oportuna decisão, pelo mesmo método. Relógios foram retirados, celulares desligados, bússola e astrolábio desacoplados.

Contudo, a definir: indumentária e recursos financeiros em pecúnia (dispensados instrumentos creditícios);  interregno temporal e consequente distar, foi designado por critério o crepúsculo solar ou das forças morais e físicas.            

Manutenidos e fornidos o veicular e viajores, se foram eles, em rumo determinado pela sorte e rota indefinida.

    *

A PR 090, Rodovia do Cerne, foi a principal ligação entre as regiões norte e sul do Estado do Paraná, desde a década de 1.930. Em seu traçado existem serras a exigir redobrada atenção, mesmo com autos, mormente no outono e inverno, em que o estado neblínico é o corrente. A rodovia atravessa algumas cidades de pequeno porte e que têm distritos, ainda menores, onde ocorrem festejos mais ortodoxos - muitas vezes chamados de quermesses, a depender do motivo - de influência religiosa, cujas práticas e tradições se estendem ao rápido acolher dos despilchados.  

 *

Tempus fugit, bem traduz a passagem do tempo por ocasiões de agradáveis ocupações. No entanto, indiferente a tudo e a todos, os fatores naturais, intrínsicos e extrínsecos, agem conforme a sua natureza e função.

Se elementos de tal considerância são olvidados, muito mais o é a deliberatividade sobre limites temporais, termostáticos e distanciais.  

Em assim sendo, assim se fazendo e assim se cumprindo, o mozaico circunstancial delineado se compôs de: viajores despilchados, famintos e enregelados, à mercê dos fatores climáticos; em titubeante tatear em rodovia de sombria fama e crescente temor de lastimar, quando não de expirar,  mormente aferidas as limitações do instável veicular.

Por força da injunção, à duras penas e ingentes esforços foi atingida lúgubre comuna, que, ainda que provida de pousada, estalagem ou albergue, mesmo que de ínfima condição, dispensada a qualidade e a privacidade, não se a poderia custear. Mesmo que, provido fosse o aldeamento de tamboretes oficiais de usura, o hebdomadário dia de repouso dos sabatistas e adiantado da hora, em nada os alentaria.

Trêfego buscar e rebuscar em bolsos e algibeiras apenas ratificou o notório: se tanto, e por muito favor do acaso, restava-lhes o indispensável para retorno ao local de origem. 

Sabedor o casal de que podia contar apenas com o discutível tirocínio contido em seus bestuntos e com as forças de seus braços e pernas, pois o que há entre elas não se mercadeja, serenaram os espíritos e tentaram aquecer os corpos com beberagem, a que utopicamente os locais chamaram de café.

Os já minguados recursos, ainda mais reduzidos ficaram com o pagamento feito à  alfurja, localizada em frente ao local da parada de ônibus, pretenciosamente chamada de Estação Rodoviária. A possibilidade de retorno à origem, já extrapolara os limites da sorte e adentrara nos dos esperneantes cálculos de economia de combustível por força dos declives no trajeto de volta. 

A esperança de obter na vil espelunca, alguma informação de valia, quiçá inspiração salvadora, se reduzira a nada, pois, a tentativa de conversação fora cortada por defenestrativo olhar do atendente.

No calçamento, a aparente naturalidade deu azo ao encontro dos olhares, em nada a indicar acusação, mas sim, a ciência de que elos fortes se forjam no fragor do enfrentamento das dificuldades com a somatória dos esforços, contudo, transmitiram a constatação segura e unânime: FERROU GERAL!
   
*

Alguns acreditam na Divina Providência, outros em horários adrede fixados, pois, naquele preciso instante, ao longe, qual dobre do amor que se despede, do uivar do cão que assiste o sepultar do dono fiel, das almas em frenesi de dores morais pungentes, se ouviu o distante e melancólico badalar de um sino.

A gélida temperatura agravada pelo vento desbreado e a absoluta falta de opção acabaram por despertar no casal,  os instintos sociais e a religiosidade oculta no âmago de cada ser, independente do caminho ao Criador. 

Deixaram o veicular abrigado pela escuridão dos arbóreos, pois é mais de se crer no preconceito que na piedade.
Humildes e circunspectos, qual conscritos, adentraram no Templo, retribuindo os olhares inquisitivos e hostis, com fisionomia de devotado louvor, onde o amor desinteressado tudo oferece e nada pede. O acariciar da brisa advinda do salão de festas, trouxe as olorosas emanações das iguarias a serem servidas após o ritual espiritual, enquanto buscavam, sem sucesso, simpático contato visual com alguma alma caridosa.


Nada! Nenhuma oportunidade de serem úteis, solícitos, participativos, algo enfim, ainda que uma missa de corpo presente ou de interrégno de obtuário, ou ainda, de ação de graças, algo que lhes proporcionasse a chance de dizer algumas palavras, e assim, aproximarem-se. 

Em que pesassem a solidariedade, somatória de esforços e sofrimento próprio, no íntimo ele se culpava pela situação, pois, dela ouvira o murmurar, a aparentar ardente prece: "Ai que fome! Ai que frio! Ai que fome! Ai que frio!

Sob a alegação de dispnéia, ele se aproximou do átrio, donde podia avistar o apressado deambular dos envolvidos nos preparativos da quermesse que muito em breve se iniciaria no barracão ao lado. Evento de poucas barracas e menores atrativos, a atenção se voltaria mesmo para o jantar, cujo cardápio, se pecava pela falta de variedade, primava pela qualidade caseira.

Avistou, em um canto da colossal mesa de trabalho, o monturo de arroz, mais ao meio vários legumes, e, conhecedor do ritual ecumênico, percebeu que,  pelo tempo restante, o jantar estava atrasado. Em ratificação e aval do raciocínio, ouviu a reclamação: - Só eu que sei fazer arroz aqui? Ainda falta montar minha barraca! E ninguém me falou de que jeito é pra fazer essas verdura aí...

A seta desferida, a palavra proferida e a oportunidade perdida não voltam. Há mais alguns itens, que,  por refugirem ao objeto desta narrativa, são relegados opportuno locco.

Ele caminhou calma e tranquilamente em direção à reclamosa, e, olhando profundamente nos porcinos olhos, afirmou: - Monte sua barraca! Eu farei o arroz e as verduras. Onde tem carne moída? E PIMENTA? E trabalhando com rapidez e eficiência, respondeu as poucas perguntas pessoais que lhe fizeram, com perguntas técnicas sobre o menu: - Arroz soltinho ou mais mole? Todos gostam de legumes? Pode pegar o milho?  

Ao encerrar da missa e se dirigir para o barracão, a pequena congregação encontrou o panelão de arroz mexicano, sugestivo e apetitoso opíparo, já em vias de finalização, mesmo porque, prato dos mais simples e rápidos (um dia eu faço pra voces). Ao receber o primeiro comentário elogioso, o vínculo com a comunidade estava iniciado.

*

No circular de pessoas e pratos, ajudando a servir e a comer, o casal forniu-se, contudo, ainda restava a grave questão do pouso. Dado o frio e vento, locais abertos estavam fora de cogitação.

Roborativa, a pergunta pestilenta não tardou: - Quem são voces e de onde vieram? E a resposta veio de forma igualmente clara e simples: - Nos perdemos na estrada, anoiteceu e ficamos com medo de seguir adiante. A estrada é perigosa e tem muita neblina. Vimos voces e nos sentimos seguros! Nos desculpem a intrusão! Sou advogado e ela é professora!  Somos de Londrina!

E veio a indagação eutanásica: - Voces são casados? E a resposta ininteligível: - mfgdmfirue*! E a repetição da pergunta: - Como? Não entendemos! E a "mentira branca" por resposta: - Sim! Somos sim! Casamos há pouco! Nós dois éramos viúvos!    

O impasse fora criado, com a obrigação da hospitalidade a impor a resolução do problema pela comunidade, não restando ao pároco outra alternativa senão acomodá-los na casa paroquial. Porém, advertiu: - Não há cama de casal e espero que se comportem! Nada de cigarros!

Há quatro coisas na vida em que não se deve confiar: frente de padre, traseira de burro, bunda de criança e cabeça de juiz! Desses 4 itens, tudo pode se esperar, à qualquer momento. Em que pese o justificado maior receio do 4º. item, em momento algum eles se perderam de vista, tendo ambos, de comum acordo, renunciado ao banho.   

*

Na manhã seguinte, depois do sóbrio café, sempre a tempo de escaparem da missa, e depois de muito agradecer, ganharam a estrada, tendo ele, cometido a sandice de comentar o que acabara de lembrar: - Minha nota da sorte escapou! Lembrei agora, que tenho U$50.00 na bolsinha da carteira. É para alguma emergência, sabe? 

E assim, desceram a serra a mais de 100 kms/h, com ela gritando: - Paaaara esta moto que eu quero te matar! Paara esta merda, que se eu te bater eu caio! Em um raro momento de calmaria, ele respondeu: - Por que voce acha que estou correndo? E casado com voce? Nem morto...!!! 

- Já disse para parar essa merda que eu quero te matar! Paaaara! E pega o trevo pra Primeiro de Maio, que vai me pagar um almoço decente! 

Lá se foi a minha nota da sorte!  
   

* * *
ASSOMBRAÇÃO

Sujeitinho metido a místico, que tinha lá, suas parcas luzes de esoterismo, o suficiente para impressionar algum leigo incauto e reconhecer um despacho de macumba. Achava-se apto para lidar com o sobrenatural, e de reserva, mantinha o mundano e eficaz recurso das pernas pra que te quero.
Saíra de casa, às 05:00 da madrugada. A Serra do Cadeado e uma blitz do exército haviam moderado seu ímpeto de eficiência. Aquele cano de metralhadora lhe parecera sinistro.
Ele sabia que sua aparente indiferença não impressionara o milico, lembrou magoado..
Apegou-se a pequena vingança, de ter entregado o processo judicial – mais de 150 folhas – ao milico, quando este lhe pediu os documentos do carro.

- Todas, ele não ganhou..! Constatou, ao lembrar-se da aflição do milico, ao ter em mãos o processo, que acabou por folhear, fascinado pelos carimbos, oscilando entre o medo de se comprometer e a erudição que deve demonstrar toda autoridade.

Já lhe parecia idéia de jerico a promessa de um fim de semana sozinho na praia (por conta da empresa), e onde fora instalada a Comarca. Para concluir o trabalho no litoral, dependia de documentos a serem apanhados na Capital, e só depois, viria o sonhado descanso.
Insistiu, porque havia se proposto a criar seu próprio estilo: 

- Um homem precisa de originalidade e determinação! Filosofou.

Consolou-se com a lembrança, de que, afinal de contas, qualquer coisa era preferível ao indefectível churrasquinho com a família da mulher, num quintal grande e pesteado, chamado de Chácara, onde, os assuntos e piadas eram catalogados numericamente, sendo a repetição e pastosidade das vozes proporcionais ao número de cervejas dizimadas.

- Mil vezes uma boa morte...! Concluiu, pela enésima vez.

Lançou um olhar divertido à paisagem, coçou a barba por fazer e ampliou o sorriso maroto para sua missão.

- Vamonos chico ! Gritou para a vida.

* * *

Muitas horas depois, através do melado de fumaça, óleo e areia que se fizera no parabrisas, enxergava a pouca luz do crepúsculo e o pesadelo que fora seu dia. O ronco do motor se misturava ao do estômago, reclamando refeições não feitas. 

- Um líder se forja no fragor da luta ! Tentou se animar.

Inexplicavelmente, encontrara o caminho e destino pelos meandros da Capital, o que o fez sentir-se um cosmopolita.
Recordou os perigos do dia: a escorregada na curva molhada, o caipira que cruzou a estrada sem olhar, as vezes que foi jogado pra fora da estrada.., e da temporada de Fórmula I, que estava no fim.

- Lá é fácil...! Todos correm na mesma direção e ao mesmo tempo.., e não tem blitz..! Confabulou consigo mesmo.

Mas valera a pena, a missão estava bem cumprida. Num assomo de orgulho, lembrou-se de que seu processo era o 3o. a ingressar na Comarca recém criada no litoral. Fizera história!

- Quase o Guiness...! Disse em voz alta, rindo de si mesmo.

Abastecera-se com uma marmitex de arroz camarão e peixe. Afinal de contas, mesmo sendo o mês de julho, ele estava no litoral. Também se munira de pinga e latas de cerveja, que experimentou antes.

- Questão de cautela..! Vai que eu não gosto da pinga..! Disse ao dono do bar, justificando a talagada.., daquelas, de formigar beiços e aquecer extremidades.

- Estou na praia ! Oba ! De férias ! Oba ! Sozinho ! Obaa ! Hoje é 6a. feira ! Obaaaaa! Repetia para si, tentando entusiasmar-se. 

Mar bravio; chuva fina que se transformara em torrencial; ruas alagadas; cidade deserta; poucos postes com fracas luzes acesas; latas e tábuas sendo arrastadas pelo forte vento. A desolação, o abandono total.
Retirou, indignado, do toca-fitas, a K7 que falava em jangadas e pescadores numa tarde ensolarada numa tal de Itapuã.
Cogitou abastecer o carro, pois se alojaria no apartamento de amigos da família, longe da cidade. Desistiu, porque embora os postos, naquela época, fechassem à noite nas estradas, ele ficaria por ali. Estava, enfim, na praia!
Por costume nacional, criticou o Governo, que queria porque queria, reduzir o consumo de combustíveis, através do fechamento de postos, ora nas cidades, ora nas estradas.
Concluiu que os partidos de oposição estavam certos. Não sabia que, 20 anos depois, lembraria com saudade daqueles tempos.
Enfim chegou ao conjunto de blocos de apartamentos de 3 andares. Já era noite, e o único carro no estacionamento era o seu.
Adentrou no apartamento, situado no 3o. andar de um dos blocos, e sentiu o cheiro de mofo, de maresia velha. Ouviu o eco das muitas vezes que ali estive, acompanhado da turma do churrasquinho, que, nas temporadas, para ali transferia a mesa e o cardápio.
Escancarou as janelas, para que saíssem os cheiros e lembranças e entrasse o ar puro do mar, que veio acompanhado de uma rajada de chuva, reduzindo a providência a uma mísera fresta.
Representando o restante da humanidade, no conjunto de prédios, uma senhora de aproximadamente 65 anos, sentada em uma confortável poltrona, assistindo televisão e fazendo tricô ou crochet, à luz de um abajur.
Observando-a através de sua fresta, tentava adivinhar as razões daquele exílio.
Foi então, que viu..
Debaixo do poste que ficava em frente ao prédio, quase na areia da praia, encontrava-se um Sr. de aproximadamente 45 anos, estatura média, reforçado, pele oliva, cabelos pretos lisos e de bigodes. Estava em pé, de braços cruzados, olhando fixamente para ele. A chuva e o vento não o incomodavam, as roupas estavam secas.

Acenou para o desconhecido, que não retribuiu o gesto e apenas olhava, com aqueles olhos negros e opacos. Não querendo permanecer na dúvida ou receio – não dormiria - apanhou sua arma e desceu as escadas, indo ao encontro do misterioso ser.
O local – cercanias do poste – estava vazio, sem qualquer vestígio. Procurou, cuidadosamente, em vão.
Olhando, lá de baixo, para o apartamento – deixara a luz acesa - viu a “Aparição” na janela, na mesma postura, olhando-o, lá de cima.

- Uai.. ! Raciocinou.

Convencido pela chuva e vento, retornou ao apartamento, e, de arma em punho, escancarou a porta. Fosse quem fosse, não iria, impunemente, apossar-se do alojamento.
O apartamento estava vazio.
Olhando pela janela, viu a “Aparição” no mesmo local, embaixo do poste, olhando-o lá de baixo. Fez um gesto obsceno para a “Aparição”, que não respondeu, mas ele percebeu que a desagradara.

- Assombração..! E das boas..! Deduziu.

- E fique ela na chuva..! Sentenciou.

Banhou-se; tomou aguardente; fumou uns cigarros; jantou calmamente; arrumou a cama e deitou. Ouviu então, um barulho da gaveta de talheres sendo aberta. Levantou-se e foi até a cozinha. A gaveta, estava fechada, intacta.

- Ilusão auditiva, só pode..! Imaginou.

Deitado novamente, ouviu barulho das janelas sendo abertas. Levantou-se e foi conferi-las.
Estavam fechadas !
Exibindo um sorriso amarelo, considerou:

- Foi a pinga..! Todas as vezes que eu tomo dessa marca, dá problema..! 

Deitou-se, outra vez, e minutos após, sentiu a mão de alguém, gelada, com todos os dedos, deslizar por sua face. No salto, para acender a luz, deixou um pedaço da pele da canela esquerda numa cadeira, e ganiu, fininho:

- Ai, ai, ai! Filha da puta, ai, ai, ai! Assombração excomungada, ai, ai, ai! Tem que ser morcego, ai, ai, ai! Senão eu to fudido, ai, ai, ai! Prédio velho e abandonado tem morcego, ai, ai, ai.


Procurou e não encontrou o morcego salvador, e ainda assoprando a canela, chamou a assombração às falas:

- Ô cara ! Eu to cansado, trabalhei feito um burro de carga; to com a vida enrolada; casado e uns carnêts em atraso; to sem escolha, a empresa não vai me pagar um hotel, mesmo que eu ache um; é isso aqui ou churrasquinho na chácara; se eu te prego fogo, não vai resolver e ainda vai me sobrar prejuízo; minha canela ainda está doída. Vamos chegar num acordo: você vai assombrar outro, que na hora que der, eu mando rezar uma missa..., fazer um despacho.., sei lá.., você escolhe! Vê se colabora, vai...! Se manda...!

E pela última vez, deitou-se, e logo após, sentiu a mão gelada, com todos os dedos, descer pelo seu rosto e peito, indo em direção à barriga. E desta vez, no pé da cama, deixou a tampa do dedão do pé direito, justo o do acelerador do carro. E berrou :

- Ai, ai, ai ! Assombração fidaputa, ai, ai, ai! Além de tudo é viado, ai, ai, ai! Lugar excomungado, ai, ai, ai! o que eu tinha que vir aqui..., ai, aiiiiiiii!! Merda, ai, ai, ai! ‘taqueus pariu! Ai, ai, ai! Pra mim chega, ai, ai, ai! Vou passar o fim de semana na beira da estrada, ai, ai, aiiiiiii, Dentro do carro, ai, ai, aiiiiiiii !

Enquanto arrumava suas coisas, lembrou-se de que não tinha abastecido o carro, e que não havia postos abertos na estrada, o que só fez aumentar a vontade de sumir daquele lugar, mas a Divindade também estava presente, fazendo-o ver o telefone:

- Polícia rodoviária? Estou em tal lugar, e preciso chegar com urgência ao norte do Estado. Onde acho combustível?

- Sim, eu sei que o temporal está piorando, e que o único caminho é o Corredor da Morte, mas o caso é sério mesmo. Ah ! Tá ! Brigado ! Que o Sr. também sobreviva a esta noite....!

Ao sair e trancar a porta, gritou para a Assombração, que – esperava - lá ficava:

- Enfia esse lugar no ...., e se eu morrer na estrada, a gente vai estar “pau a pau”, e eu te pegarei, palhaço.., xibungo...! E deixei a garrafa de pinga aberta...! Pegue uma cirrose.., imbecil ...!

Muitas horas depois, dia claro, chegando em casa, semi-morto, verdadeira “Aparição”, fez uma prece sincera, de agradecimento ao bondoso caminhoneiro, que trafegou a sua frente e o guiou pelo Corredor da Morte, através da noite e da tempestade.
Ganhou, da esposa, uma alegre recepção:

- Oi, que bom que você chegou antes...! O pessoal ta todinho na Chácara,..., fazendo churrasquinho. Vai ser hoje e amanhã. Vamos combinar as férias na praia. Estão nos esperando...! Vamos?

No seu desespero, viu a intervenção da Providência Divina, e disse para si mesmo:

- Com esse povo, a Assombração tá lascada..! Bem disse o SENHOR no Livro Santo: - A vingança é minha !

E para a esposa ansiosa:

- Claro, querida ! Vamos sim.. ! Gostei da parte da praia..., será inesquecível...!

Alan – 18.11.06

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